Por: Ludmila Mara Monteiro de Oliveira, Sheila Aires Cartaxo Gomes
Fonte: Conjur
Não são poucos os que se dedicaram ao estudo da compressão do espaço-tempo, enquanto fenômeno central da globalização. Passa a “vida [a] se assemelha[r] a um líquido — tudo flui rapidamente, sem formas fixas. As relações, o trabalho e até a identidade tornam-se efêmeras, reféns de uma velocidade que não permite enraizamento.”
No ano passado escrevemos algumas linhas introdutórias deste tema que, há muito, deveríamos ter dado sequência; mas, que o atropelo do tempo não nos permitiu. À época, contamos que a 2ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) havia começado a se debruçar sobre a possibilidade de uma ordem judicial ter obstaculizado o transcurso do prazo decadencial e prometemos, tão logo findo o julgamento, dedicar uma coluna para abordar o seu desfecho.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência costumam, de forma peremptória e majoritária, afirmar que, na obrigação tributária, o prazo decadencial não sofre interrupções nem suspensões em sua marcha. Há, entretanto, algumas correntes que desafiam o entendimento, ainda que em singelas nuances.
Para Regina Helena Costa o II do artigo 173 do CTN, ao consignar que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após cinco anos, contados da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado, traria verdadeira hipótese de interrupção do prazo decadencial.
Ao analisar o mesmo dispositivo, conclui Luciano Amaro que nele inserido, concomitantemente, uma causa suspensiva (conquanto o prazo não escoa durante o trâmite do processo em que há discussão acerca da nulidade do lançamento) e uma hipótese interruptiva da decadência (uma vez que prazo recomeça a ser contado da decretação da nulidade por vício de natureza formal).
Já Eurico de Santi, apesar de refutar a existência de causas legalmente previstas para obstar a contagem do prazo decadencial, aduz ser possível existir, na realidade fática, hipóteses em que impedida a constituição do crédito tributário, dissociada de qualquer inércia ou conduta omissiva do sujeito ativo.
Passemos analisar a querela devolvida à 2ª Turma da CSRF, como prometemos.
Contra o sujeito passivo foi lançado crédito referente a contribuições previdenciárias, apuradas com base em remunerações pagas ou creditadas a segurados não efetivos — isto é, servidores ocupantes de cargos comissionados e servidores designados para o exercício de função pública, que são vinculados ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) —, referentes às competências compreendidas entre dezembro de 1998 e dezembro de 2006.
Com a ciência do lançamento em setembro de 2008 (termo final da contagem do prazo decadencial), pediu o sujeito passivo a decretação parcial da causa extintiva da obrigação, com arrimo (i) tanto na Súmula Vinculante nº 8 do Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade do prazo decadencial decenal previsto em lei ordinária (Lei nº 8.212/91), (ii) quanto no fato de inexistir causas suspensivas ou interruptivas da decadência. Ao sentir do autuado, ainda que emanada ordem judicial, o lançamento deveria ter sido levado a cabo, obstados apenas atos que visassem a satisfação do crédito tributário.
Após as razões de defesa declinadas na impugnação e no recurso voluntário terem sido rejeitadas, interposto recurso especial, pretendendo a uniformização da interpretação do disposto no inciso V do artigo 156 e do inciso I do artigo 173, ambos do CTN. Em síntese, reafirmou que o prazo decadencial não se suspende nem se interrompe, além de sustentar ser improcedente a alegação de que as autoridades fazendárias estivessem impedidas de efetuar o lançamento enquanto vigia a liminar. Isso porque, bastaria ter se valido do instituto do lançamento para evitar a decadência.
Fato incontroverso que o sujeito passivo da obrigação tributária:
impetrou o mandado de segurança n. 1999.38.00.017.818-2, sendo-lhe concedida liminar, em 12/05/99, onde o juiz determinou que o impetrado (INSS – à época competente para arrecadar as contribuições previdenciárias) “se abstenha da constituição do crédito tributário ou a cobrança daquele já constituído [ … ] referente aos servidores não titulares de cargo efetivo, [ … ] bem como se abstenha de praticar qualqúer ato de constrição fiscal”. Esta liminar foi confirmada por sentença, datada de 16/11/99, onde se manteve a mesma determinação. A decisão foi cassada pelo Tribunal Regional Federal da primeira região em 27/02/2007.
Para comprovar ainda a fidedignidade da informação, no acórdão nº 9202-011.269 reforçado que:
em consulta aos documentos do processo de apelação no 2000.01.00.034274-6, é possível extrair o inteiro teor da sentença de primeira instância por meio da transcrição efetuada no voto vista disponível no endereço: https://arquivo.trf1.jus.br/PesquisaMenuArquivo.asp?p1=200001000342746&pA=200001000342746&pN=328816520004010000.
A sentença apelada assim concluiu:
Isso posto, rejeito as preliminares e julgo procedente o pedido, reconhecendo a inconstitucionalidade do inciso V, do art. 1º, da Lei n. 9.717/98, bem como das Portarias MPAS n. 4.882/98, 4.883/99, 4.992/99, e ainda das Orientações Normativas MPAS n. 9 e INSS n. 10 e da Ordem de Serviço n. 619, cuja incidência fica afastada. Pelo mesmo motivo, ficam afastadas as regras dos artigos 12, I, ‘g’, e 15, I, parte final, da Lei 8.212/91.
Em conseqüência, declaro a inexistência de relação jurídica que autorize o INSS a fazer qualquer exigência tributária (desobrigando, pois, o Estado de recolhimento) referente aos servidores não titulares de cargo efetivo, incluindo-se os ocupantes de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, bem como de outro cargo temporário ou emprego público. Em interpretação conforme a Constituição do art. 40, §13, com a redação que lhe deu a Emenda n. 20/98, reconheço o direito de o Estado dispor, na forma dos artigos 25 e 149, parágrafo único da Carta Magna, sobre o seu regime próprio de previdência (e assistência) dos servidores (ou agentes) públicos, observadas as normas gerais do RGPS.
Concedo a segurança, confirmando a liminar, para determinar à Autarquia, na pessoa do Impetrado (ou de quem pelos atos impugnados venha a responder), que se abstenha da constituição do crédito tributário ou da cobrança daquele já constituído, representado pelas referidas contribuições, com todos os consectários legais, bem como que se abstenha de praticar qualquer ato de constrição fiscal (tais como promoção de bloqueio de recursos, inscrição em dívida ativa, inclusão no CADIN e recusa à expedição de Certidão Negativa de Débito) (fls. 324-325).
Alegação nº 1: (Im)possibilidade de lançamento para prevenir a decadência
Tendo o comando sentencial expressamente determinado que o sujeito ativo “se abstenha da constituição do crédito tributário” fica afastada a possibilidade de lançamento para prevenir decadência, sob pena de configurado o crime previsto no art. 330 do Código Penal (desobediência). A decisão objeto desta coluna destaca que
[q]uando há decisão judicial que impede o próprio lançamento para prevenir decadência, cominando multa diária e configuração de crime, em caso de eventual descumprimento, a atividade de fiscalização fica paralisada por fato alheio a seu controle, inclusive para fins de aplicação do art. 63 da Lei n° 9.430, de 1996.
O prosseguimento da atividade pela administração tributária, ainda que mediante simples lançamento preventivo fundado no art. 63 da Lei n° 9430, de 1996 configuraria, por si só, descumprimento da decisão judicial, além de ser motivo para eivar o lançamento de nulidade.
(…)
Não é permitido à autoridade administrativa desobedecer a uma ordem judicial. Diante de tal determinação não restava à autoridade fiscal lançadora outra atitude que não observá-la e aguardar as providencias recursais junto às instâncias superiores do Judiciário por parte da Procuradoria da Fazenda Nacional objetivando a reforma da decisão exarada.
E foi o que ocorreu. A Fazenda Nacional somente conseguiu restabelecer a correta aplicação das disposições do CTN, vindo a liberar a anterior proibição judicial de se promover o lançamento somente 27/02/2007. Antes dessa data havia absoluta impossibilidade legal de se concretizar o lançamento, por força de decisão judicial.
Logo, a existência de medida judicial impedindo a ação das autoridades fiscais, no sentido mais amplo possível, impediu a formalização do lançamento por quase 8 anos. Tal embaraço à ação fiscalizadora suspendeu a fluência do prazo de decadência previsto no CTN para a prática do ato administrativo do lançamento.
Assim, a tese aventada pelo sujeito passivo no sentido de estarem as autoridades fazendárias aptas levar a cabo o lançamento foi, de forma unânime, rejeitada pelo colegiado.
Alegação nº 2: (Im)possibilidade de suspensão ou interrupção do prazo decadencial
O segundo argumento suscitado pelo sujeito passivo diz respeito à inexistência de hipóteses suspensivas ou interruptivas do lustro quinquenal para aferição da decadência. Colacionando a ementa do AgInt no REsp nº 1847190/RJ reafirma que o “entendimento do STJ [é] de que o prazo para constituição do crédito tributário é decadencial e, nos termos do CTN, não sofre interrupção ou suspensão, iniciando-se na data da ocorrência do fato gerador.”
Para o enfretamento da alegação buscou o Acórdão nº 9202-011.269 lições trazidas pelos civilistas. Elucidado que
[n]as palavras de Antônio Luis da Câmara Leal, decadência é “a extinção do direito pela inércia do seu titular, quando sua eficácia foi, de origem, subordinada à condição de seu exercício, dentro de um prazo prefixado, e este se esgotou sem que esse exercício se tivesse verificado”.
Em outras palavras, a decadência do direito do Fisco, na esfera tributária, é a perda do direito do sujeito ativo do crédito tributário de receber esse crédito, em razão da inércia da autoridade administrativa de efetivar o lançamento de ofício no lapso de tempo determinado pelas diversas normas aplicáveis.
Firmada a premissa, concluiu-se que,
[t]razendo essa acepção ao caso dos autos, não vislumbro inércia por parte do fisco capaz de configurar a decadência, eis que em razão de determinação judicial estava impedido de constituir o crédito tributário.
Quando há decisão judicial que impede o próprio lançamento para prevenir decadência, cominando multa diária e configuração de crime, em caso de eventual descumprimento, a atividade de fiscalização fica paralisada por fato alheio a seu controle (…).
(…)
Neste caso, o titular do direito ao crédito não deu causa ao tempo perdido e o tempo decorrido entre a paralisação da atividade administrativa para a constituição do crédito por ordem judicial e a revisão dessa mesma ordem judicial não pode estar inserida no prazo decadencial.
Ou seja, sem inércia do exequente, não há que se cogitar ter sido a exigência fulminada pela decadência. De forma a robustecer o entendimento externado, colacionado alguns precedentes colhidos tanto da esfera judicial quanto da administrativa.
Se não fossem suficientemente robustas as razões já apresentadas, apresentadas ainda as conclusões trazidas no Parecer PGFN/CAT/No 688/2015, no qual admite a possibilidade de suspensão fática do prazo decadencial por força de decisão judicial que impede o lançamento.
Acima de tudo: o caso concreto
O que bem revela a decisão objeto da coluna de hoje é que mantras não podem ser bradados de forma acrítica. Se houvesse apego apenas às lições jurisprudenciais e doutrinárias que salientam não haver interrupção nem suspensão do prazo decadencial, não teriam os olhos sido voltados para o fato de que a decisão judicial não só obstou atos constritivos — como sói acontecer —, como ainda proibiu a realização do próprio lançamento. Acima de tudo, a realidade do caderno processual há de ser analisada de forma minudente. Este é o grande papel a ser desempenhado pelas conselheiras e conselheiros do Carf.
O que bem revela a decisão objeto da coluna de hoje é que mantras não podem ser bradados de forma acrítica. Se houvesse apego apenas às lições jurisprudenciais e doutrinárias que salientam não haver interrupção nem suspensão do prazo decadencial, não teriam os olhos sido voltados para os exatos limites da decisão judicial. O fato de a liminar não só obstar atos constritivos — como sói acontecer —, como ainda proibir a realização do próprio lançamento, não pode passar despercebido. Diante desses fatos, merece ser reconhecida a suspensão da contagem do prazo decadencial, sob pena de negligenciar aquilo que alicerça os institutos da decadência (e também da prescrição): a inércia do exequente.
O que se espera, no âmbito do contencioso administrativo fiscal, é que realidade do caderno processual seja analisada de forma minudente. Este é o grande papel a ser desempenhado pelas conselheiras e conselheiros do Carf.
* este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.