Por: Daniel Moreti
Fonte: Conjur
A transição para o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) levanta diversas preocupações, especialmente em relação ao tratamento dos saldos credores dos tributos atuais, com destaque para o ICMS. Essa questão se desdobra em duas frentes principais: os saldos credores “simples” e os créditos acumulados.
Os saldos credores simples de ICMS decorrem dos valores apropriados nas entradas de mercadorias, que são posteriormente utilizados para compensação com débitos do mesmo período ou de períodos subsequentes.
A maior e mais complexa preocupação, no entanto, recai sobre os créditos acumulados. Estes não são meros saldos credores, mas sim valores que se acumulam devido a anomalias do sistema tributário atual. Essa acumulação ocorre em situações de desoneração, total ou parcial, na saída de mercadorias que foram adquiridas com a incidência do ICMS.
Um exemplo clássico é o das operações de exportação. Nesses casos, a legislação garante a manutenção do crédito de ICMS, mesmo que a saída seja amparada por imunidade (Constituição Federal, artigo 155, §2º, X, alínea “a”). Isso significa que, ao exportar, a empresa mantém o crédito de ICMS referente à aquisição das mercadorias, mas não gera débito de ICMS na saída, resultando em acúmulo de crédito.
Além das exportações, outras situações também geram créditos acumulados, como:
– Diferença de alíquotas: Quando as alíquotas aplicadas na saída de mercadorias são inferiores às alíquotas de entrada.
– Saídas com isenção: Em casos específicos onde a legislação estadual ou distrital admite a manutenção do crédito mesmo com a isenção na saída (por exemplo, Lei SP nº 6.374/89, artigo 46).
Os créditos acumulados integram os saldos credores, mas podem ser destacados e ter uma utilização diferente da simples compensação de débitos. Ou seja, ao contrário dos saldos credores simples, que só podem ser usados para compensação escritural, os créditos acumulados são reconhecidos como valores distintos, permitindo a recuperação do custo que onerou a aquisição de bens para revenda.
Para os créditos acumulados gerados na exportação de bens, a Lei Complementar 87/96 (§1º do artigo 25) assegura o direito de sua transferência para terceiros. Isso é crucial para empresas que não conseguem utilizar esses créditos integralmente para compensações com débitos de ICMS em seus próprios estabelecimentos na mesma unidade federativa.
Quanto aos créditos acumulados gerados em outras hipóteses, como a diferença de alíquotas entre as entradas e as saídas e as saídas com isenção, nos casos em que se admite a manutenção do crédito, o reconhecimento da sua formação e a possibilidade de transferência para terceiros depende de autorização na legislação local.
Ocorre que, um dos grandes entraves para as empresas brasileiras reside na dificuldade de recuperar os créditos acumulados de ICMS. Em boa parte dos estados, faltam mecanismos, metodologias, sistemas ou até mesmo normas específicas que permitam a efetiva recuperação desses valores, seja por exportações, saídas com alíquotas diferenciadas ou isenções.
Mesmo quando há apuração e homologação desses saldos credores acumulados, o problema persiste na morosidade da autorização para transferência a terceiros. Embora o §1º do artigo 25 da LC nº 87/96 garanta essa possibilidade para créditos de exportação, é comum o atraso e/ou limitação dessa autorização, impondo condições como redução de valores ou parcelamentos.
Na prática, essa ineficiência na recuperação dos créditos acumulados de ICMS gera diversas consequências negativas, dentre elas: 1) violação ao princípio constitucional da não-cumulatividade, em razão da não recuperação do crédito que não pode ser consumido para compensação no fluxo das operações do contribuinte; 2) oneração da atividade econômica, pois os créditos, que deveriam ser um ativo com liquidez, tornam-se um custo irrecuperável, impactando diretamente o Custo da Mercadoria Vendida (CMV) e a lucratividade das empresas; 3) comprometimento das demonstrações financeiras, pois a impossibilidade de reaver esses valores impacta a saúde financeira, distorcendo balanços e fluxos de caixa.
Além disso, esse cenário alimenta o já caótico cenário do contencioso no âmbito do Poder Judiciário, em um momento em que se discute, com avanços positivos, a redução da litigiosidade no âmbito tributário.
O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já se posicionou reiteradamente pela autoaplicabilidade da norma do §1º do artigo 25 da LC nº 87/96, reafirmando o direito dos contribuintes de transferir o saldo credor acumulado de exportação a outros contribuintes localizados na mesma unidade federativa (vide AgInt no AREsp nº 2.184.718/RS, DJe de 14/9/2023).
Mesmo com as inoperabilidades atuais não solucionadas no sistema tributário brasileiro, as atenções se voltam para a reforma tributária e sua implementação. A esperança é que ela traga um sistema mais eficiente, menos oneroso e menos complexo para os contribuintes, resolvendo problemas antigos. No entanto, quando o assunto são os saldos credores e créditos acumulados de ICMS, a solução parece ainda estar longe de ser ideal.
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, o cenário para os créditos de ICMS passa por uma mudança significativa. O artigo 134 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabelece que, ao final do período de transição, em 31 de dezembro de 2032, quando o ICMS será definitivamente extinto, todos os saldos credores de ICMS existentes deverão ser homologados pelos respectivos entes federativos. Somente após essa homologação os créditos poderão ser efetivamente utilizados pelos contribuintes.
Essa sistemática de homologação abrangerá não apenas os saldos credores simples, mas também os créditos acumulados, sejam eles decorrentes de operações de exportação ou de outras hipóteses previstas nas legislações estaduais e distrital.
Contando com uma possível não atuação dos estados e do Distrito Federal para homologar os saldos credores acumulados, a própria EC nº 132 estabelece que, uma vez apresentado o pedido de homologação, o ente federativo deverá se pronunciar no prazo estabelecido na lei complementar e, na ausência de resposta ao pedido de homologação no prazo especificado, os respectivos saldos credores serão considerados homologados de forma tácita.
O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/2024 (artigo 151) detalha os procedimentos para o aproveitamento desses créditos. De acordo com o PLP, os pedidos de homologação deverão ser protocolados em até cinco anos a partir de 1º de janeiro de 2033. O estado terá um prazo de doze meses para dar uma resposta. Caso haja omissão por parte do Estado, a homologação ocorrerá de forma tácita, garantindo o direito do contribuinte, mas ressalvando a possibilidade de futura fiscalização.
Uma vez homologados, os saldos credores de ICMS serão comunicados ao Comitê Gestor para que seja possível a compensação com o IBS, o que deverá ocorrer da seguinte forma: a) bens adquiridos para integrar o ativo permanente: a compensação se dará à razão de 1/48 por mês, devendo a primeira fração ser apropriada no mês em que ocorrer a entrada no estabelecimento; e b) bens adquiridos para revenda ou para os bens produzidos para venda: a compensação ocorrerá em 240 parcelas mensais.
Resta evidente que o constituinte derivado, além de não prever meios eficientes para a recuperação dos saldos credores acumulados de ICMS, estabeleceu uma verdadeira moratória de 20 anos a que estarão submetidos os contribuintes que chegarem em 31 de dezembro de 2032 com este “ativo” em suas escriturações fiscais, com atualização pelo IPCA ou por outro índice que venha a substituí-lo, a partir de 2033.
Neste cenário, uma vez homologado o saldo credor de ICMS, expressa ou tacitamente, o contribuinte terá as seguintes opções para utilizá-lo:
1. Compensação com débitos do próprio ICMS, constituídos ou não, desde que haja concordância entre o sujeito passivo e o respectivo ente federativo. Essa modalidade deverá ser regulamentada pela legislação de cada Estado e do Distrito Federal;
2. Compensação com IBS, em 240 parcelas mensais, após a informação do crédito homologado ser prestada pelo Estado ou Distrito Federal;
3. Transferência para integrantes do mesmo grupo econômico ou a terceiros, caso não seja possível a compensação pelo contribuinte; ou
4. Ressarcimento, como alternativa à transferência), também em 240 meses. É importante notar que essa opção não se aplica a terceiros que tenham recebido o saldo credor por transferência.
Vale ressaltar que, apenas na impossibilidade de realização da compensação do saldo credor de ICMS homologado com o próprio ICMS ou com o IBS, e não tendo sido realizada a transferência, é que o titular do saldo credor poderá, finalmente, requerer o seu ressarcimento.
É fato que, de acordo com a novel legislação (constitucional e infraconstitucional) que disciplina a reforma tributária, é improv2ável que, no campo do IBS e da CBS, surjam problemas semelhantes ao acúmulo de saldos credores de difícil recuperação, tal como ocorre no ICMS.
No entanto, os “espólios” deixados pelo ICMS — ou seja, os saldos credores simples e os créditos acumulados de exportação e de outras operações onde as legislações estaduais garantem a formação do saldo — não receberam um tratamento adequado. Essa questão não se alinha com o princípio da não-cumulatividade do imposto, que continua em plena vigência, nem com a segurança jurídica e a garantia da justiça tributária (conforme o §3º do artigo 145 da Constituição, incluído pela EC nº 132/2023).
Para garantir a aplicabilidade dos princípios tributários e construir um cenário de maior confiança do contribuinte no estado, seria fundamental que a reforma tributária tivesse atribuído aos saldos credores e aos créditos acumulados de ICMS formas eficazes para sua utilização e redução já durante o período de transição (de 2026 a 2032). Além disso, seria crucial que a recuperação desses valores ocorresse em prazos e condições razoáveis.
Infelizmente, não foi isso que se fez. Para os contribuintes que chegarem ao final de 2032 com esses saldos acumulados, será imposta uma ofensiva moratória que se estenderá por longos 20 anos. Em nossa visão, essa medida pode ter sua constitucionalidade questionada em razão da evidente violação, em especial, ao princípio da não-cumulatividade do ICMS.
O tratamento dispensado aos saldos credores de ICMS pela Emenda Constitucional nº 132/2023 representa, na prática, uma penalização severa aos contribuintes que, de forma totalmente lícita, acumularam esses créditos em suas operações.
O fundamento para essa penalização é, surpreendentemente, a simples transição para o novo modelo tributário. Essa disciplina desconsidera por completo os direitos dos contribuintes, especialmente aqueles decorrentes do princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS, que permanece em plena vigência e não foi revogado.
A reforma, ao invés de buscar uma solução justa e eficiente para o passivo de créditos, parece impor um ônus desproporcional a quem seguiu as regras vigentes até então.
Como alternativa à longa compensação dos créditos de ICMS, os titulares dos saldos credores até poderão vender esses direitos a terceiros por meio da transferência. No entanto, o interesse de terceiros tende a ser reduzido. Isso porque, além do prazo de 240 meses para a compensação, os adquirentes não poderão solicitar o ressarcimento desses valores.
Essa restrição ao ressarcimento é um ponto cuja constitucionalidade pode ser questionada caso seja mantida no PLP nº 108/2024. O parágrafo 6º do artigo 134 do ADCT, ao prever que a lei complementar disporá sobre a forma pela qual os titulares dos créditos poderão transferi-los a terceiros e como o crédito será ressarcido ao contribuinte, não autoriza a imposição de limitações que acabem por lesar o direito à devolução dos saldos credores de ICMS.
Seria totalmente legítimo que um terceiro adquirisse este direito com deságio, para recebê-lo ao longo dos anos na sua integralidade, desde que fosse conferida a tal crédito a natureza de direito creditório sem restrições à transferência. É exatamente o que ocorre no cenário dos precatórios, originado na impontualidade do poder público no cumprimento de suas obrigações.
Da forma como a matéria foi tratada pela EC 132/2023 e continua sendo pelo PLP nº 108/2024, com o estabelecimento de um prazo de 240 meses e a existência de excessivas restrições, haverá um grave prejuízo para os titulares de saldos credores e créditos acumulados, que já enfrentam, com grande dificuldade, a inoperabilidade na devolução ou recuperação desses créditos atualmente.