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Quotas Preferenciais Nas Sociedades Limitadas: Meio Para Enfrentamento De Crises

Em junho passado, mais precisamente em 10.06.2020, o Departamento Nacional de Registro Empresarial, conhecido pela sigla DREI, baixou a Instrução Normativa nº 81 com a consolidação dos atos de registros das sociedades empresárias.

A grande novidade dessa Instrução Normativa centrou-se na autorização para os pedidos de arquivamento dos contratos das sociedades limitadas com a instituição das quotas preferenciais, ao lado das tradicionais quotas ordinárias.

Assim, as sociedades limitadas reguladas no Código Civil passam a ter a possibilidade da adoção de um instituto típico das sociedades por ações regulamentadas pela Lei nº 6.404/76.

Trata-se de uma medida com enorme repercussão para as sociedades limitadas, que representam o grande universo das empresas nacionais.

Certamente a decisão tomada pelo órgão de registros dos atos societários teve como base a lei da liberdade econômica – Lei 13.874/10 – que tivemos oportunidade de analisar nos encontros realizados no auditório do nosso escritório.

No presente boletim serão examinados alguns pontos estruturais decorrentes da instituição das quotas preferenciais na estrutura jurídica das sociedades limitadas. É a primeira aproximação com a matéria, porquanto somente a visão pratica dará a real dimensão dessa surpreendente e alvissareira medida.

 

  1. Força constitutiva da Instrução Normativa nº 81, de 10.06.2020, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração – DREI

Consta do site do Ministério da Economia que as regras gerais do Registro Público de Empresas foram consolidadas em um só documento público.

Isso foi ultimado pela Instrução Normativa nº 81, de 10.06.2020, baixada pelo DREI.

No ponto, quadra destacar os seguintes itens do Anexo IV do Manual de Registro de Sociedade Limitada, que integra a referida Instrução Normativa:

[…]5.3. REGÊNCIA SUPLETIVA DA LEI Nº 6.404, DE 1976. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, conforme art. 1.053, parágrafo único, do Código Civil.
Para fins de registro na Junta Comercial, a regência supletiva:
I – poderá ser prevista de forma expressa; ou
II – presumir-se-á pela adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas, desde que compatível com a natureza da sociedade limitada, tais como:
a) quotas em tesouraria;
b) quotas preferenciais;
c) conselho de administração; e
d) conselho fiscal.
5.3.1. Quotas preferenciais.
São admitidas quotas de classes distintas, nas proporções e condições definidas no contrato social, que atribuam a seus titulares direitos econômicos e políticos diversos, podendo ser suprimido ou limitado o direito de voto pelo sócio titular da quota preferencial respectiva, observados os limites da Lei nº 6.404, de 1976, aplicada supletivamente.
Havendo quotas preferenciais sem direito a voto, para efeito de cálculo dos quóruns de instalação e deliberação previstos no Código Civil consideram-se apenas as quotas com direito a voto.

Havendo quotas preferenciais sem direito a voto, para efeito de cálculo dos quóruns de instalação e deliberação previstos no Código Civil consideram-se apenas as quotas com direito a voto.

Vê-se que a Instrução Normativa 81/20, baixada pelo DREI, que é um ato instrumental, tratou de questão jurídica que envolve a estrutura das sociedades limitadas, o que poderia colocar em dúvida a validade dessa instrução, já que a definição do regime jurídico dessas sociedades é matéria de reserva do Código Civil.

Não há essa invalidade, uma vez que na Instrução Normativa consta que a autorização concedida tem como exigência ou condição a previsão no contrato social da adoção como norma supletiva os comandos constantes da Lei nº 6.404/76.

Dessa forma, juridicamente, significa que as regras do Código Civil que tratam da sociedade limitada são complementadas pelas normas da Lei 6.404/76 (Lei das S/A), nos pontos em que forem compatíveis.

É o que se observa em relação às quotas preferenciais. Diz o mestre Alfredo Lamy Filho[1] que “a principal função da ação preferencial é captar capital próprio nos mercados, associando à companhia investidores que somente têm interesse em direitos patrimoniais e não querem ou não podem exercer a função empresarial”.

Ora, sendo assim, não há justificativa plausível para que esse instituto societário fosse negado às sociedades empresárias organizadas sob a forma de sociedade limitada, porquanto elas também exercem atividade econômica organizada. A forma não deve prevalecer sob a essência, abrindo-se espaço para a regência do ordenamento jurídico.

Para tanto, torna-se imperativo a inclusão dessa cláusula no contrato social, se existir essa lacuna.

 

  1. Da distinção entre quotas ordinárias e preferenciais

O Código Civil não traz essa distinção, sendo imperativo anotar que o artigo 15 da Lei nº 6.404/76 define que as ações da companhia, conforme a natureza dos direitos ou vantagem que confiram a seus titulares, podem ser ordinárias, preferenciais ou de fruição.

Os doutrinadores anotam que as companhias foram originalmente constituídas com uma única espécie de ação. Aduzem que com o desenvolvimento dos mercados de capital diversas legislações passaram a admitir, além da ação ordinária, as ações preferenciais (outra espécie de ação) que conferem vantagem, a seus titulares, em relação às ordinárias.

De forma direta, constata-se que as diferenças centrais entre as ações ordinárias e preferenciais podem ser resumidas em duas questões: o direito a voto e o recebimento de dividendos.

A ação ordinária assegura o direito de voto, o que evidencia a intenção do acionista na participação dos rumos da empresa, com base no exercício dos denominados direitos políticos, tipificados no direito de voto e principalmente o poder centrado na administração. Por sua vez, o investidor que escolhe as ações preferenciais busca, em primeiro plano, benefício patrimonial, em especial a prioridade no recebimento dos dividendos.

A Lei nº 10.303/2001, que atualizou a Lei nº 6.404/76, prevê os seguintes tipos de vantagens patrimoniais às ações preferenciais:

I – em prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo;

II – em prioridade no reembolso do capital, com prêmio ou sem ele; ou

III – na acumulação das preferências e vantagens de que tratam os incisos I e II.

Como já ressaltado, observa o mestre Alfredo Lamy Filho que a principal função da ação preferencial é captar capital próprio nos mercados, em substituição aos financiamentos bancários. Em suma, a ação preferencial atrai os investidores e não pessoas com interesse na administração da sociedade.

Seja como for, a emissão e colocação das ações preferenciais viabilizam o financiamento societário da companhia, que fica vinculado ao lucro apurado pela empresa, a afastando do mercado financeiro, como será detalhado no item seguinte.

 

  1. Alternativa para a solução de crise econômico-financeira

Como visto, a recente Instrução Normativa 81, de 10 de junho de 2020, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), regulamentou a possibilidade de instituição de quotas preferenciais sem direito a voto para as sociedades limitadas regidas supletivamente pela Lei das S/A.

Dessa forma, essas sociedades poderão adotar uma dinâmica societária bem mais complexa, ao assegurar a participação de sócios titulares de vantagens políticas e econômicas diferenciadas.

Indiscutivelmente, tem-se uma evolução que confere maior flexibilidade às sociedades limitadas, mediante a configuração dos arranjos societários com maior liberdade de ação, especialmente com a instituição das quotas preferenciais que garantem a essas sociedades o financiamento no âmbito societário, distanciando-as do mercado financeiro tradicional.

Assim, a instituição das quotas preferenciais pode franquear às sociedades limitadas uma importante ferramenta para o enfrentamento de eventual crise econômico-financeira.

Isso porque as quotas preferenciais, como visto, são aquelas que conferem aos seus titulares vantagem patrimonial ou benefícios especiais não existentes em relação às quotas ordinárias, a exemplo da prioridade na distribuição dos lucros, ou no reembolso do capital no caso da liquidação da sociedade; participação diferenciada na distribuição de bonificações.

Tudo vinculado ao afastamento do direito de voto ou restrição do seu exercício em determinados casos.

Um exemplo pode ser cogitado. Embora a atividade exercida apresente sinais de consistência, a empresa enfrenta uma crise econômico-financeira centrada na dificuldade da geração regular de fluxo de caixa. Em vez de buscar ajuda no mercado financeiro, que quase sempre agrava a situação, pode providenciar a admissão como sócio investidor um dos seus principais fornecedores de insumos ou matéria-prima, dando-lhe a titularidade das quotas preferenciais emitidas segundo as condições previamente pactuadas em relação aos seus direitos patrimoniais.

Admite-se como sócio um parceiro que disponibiliza os recursos financeiros, com a contrapartida da remuneração societária garantida às quotas preferenciais. Em lugar do financiamento tradicional, a empresa recebe investimento societário vinculado às quotas preferenciais emitidas.

  

  1. A questão do quórum de deliberação

A Instrução Normativa 81 baixada pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) previu a possibilidade de instituição de quotas preferenciais sem direito a voto para as sociedades limitadas regidas supletivamente pela Lei das S/A.

Quanto ao quórum para deliberação, a citada Instrução Normativa resolveu a questão da seguinte forma: “havendo quotas preferenciais sem direito a voto, para efeito de cálculo dos quóruns de instalação e deliberação previstos no Código Civil consideram-se apenas as quotas com direito a voto”. Portanto, em todos os artigos do Código Civil com referência a quóruns (unanimidade, 2/3, 3/5, maioria etc.) deve-se levar em conta apenas as quotas com direito a voto.

Sem embargo, o sócio titular das quotas preferenciais pode indicar profissional para integrar o quadro da direção da empresa, em conformidade com o artigo 18 da Lei nº 6.404/76.

 

  1. A questão da responsabilidade dos titulares das quotas preferenciais

Em princípio, por não participarem do corpo diretivo, os sócios titulares das quotas preferenciais não devem responder pelos atos de gestão dos administradores da empresa.

É possível defender que essa exclusão de responsabilidade se aplica ao campo tributário, uma vez que a configuração da responsabilidade prevista no artigo 135 do Código Tributário Nacional pressupõe ato de gestão dos administradores, com excessos de poderes, o que, em princípio, não ocorre na atuação dos sócios titulares de quotas preferenciais.

 

  1. Quotas preferenciais no planejamento sucessório

As quotas preferenciais podem ser utilizadas nos arranjos societários que envolvem os planejamentos sucessórios no âmbito da empresa operacional.

A questão radica em torno da decisão de não tratar de forma desigual os herdeiros. Neste contexto, são destinadas quotas das sociedades ao filho ou filha que não possui qualquer relação com o negócio.

Isso geralmente constitui fonte de litígio na administração da sociedade, o que tem sido evitado com a criação das sociedades holdings para afastar os litígios societários do âmbito da empresa operacional. As controvérsias societárias ficam centradas na holding.

Agora, essa questão pode administrada com a emissão de quotas preferenciais em favor dos herdeiros que não pretendem participar da administração da sociedade operacional. Eles abdicam dos seus direitos políticos, mas garantem preferência no recebimento dos resultados patrimoniais gerados pela empresa operativa.

 

  1. Viabilização das Startups com base nas quotas preferenciais

Sabidamente, as startups não configuram uma nova espécie de pessoa jurídica de direito privado ou outro tipo jurídico societário, podendo ser estruturada com base na conformação de uma efetiva sociedade limitada.

Têm como nota característica serem instituição em estágio inicial de desenvolvimento, geralmente centradas nos sonhos dos seus idealizadores.

Assim, seus sócios fundadores apresentam perfil empreendedor, inspirador e inovador, geralmente destituídos de recursos financeiros para viabilizar o empreendimento. Passam, portanto, por restrições orçamentárias e necessidade de participação de investidores nos diferentes níveis de desenvolvimento do negócio.

No campo societário, a viabilização do investimento podia ser ultimada com a criação da Sociedade em Conta de Participação, que embora não tenha personalidade jurídica própria, possibilita a reunião de patrimônio conferido pelo sócio participante para a exploração do empreendimento, com a formação de um patrimônio especial. Isso garante o relacionamento interno entre sócio ostensivo e sócio participante.

Assim, no ambiente das startups, a sociedade em conta de participação era adotada para viabilizar a realização de investimento pelos investidores e não para a constituição da startup.

Representava um arranjo societário que proporcionava maior controle das atividades da startup aos sócios fundadores, além de garantir limitação de responsabilidade aos investidores, desde que eles não participassem da gestão da startup.

A despeito da inventividade desse arranjo societário, a solução encontrada deixava sinais da sua artificialidade.

Outro meio centrava-se na constituição de uma sociedade holding que permitia ao sócio investidor participar do processo de desenvolvimento da startup a partir de uma sociedade investidora.

Agora, nada disso é necessário. Com a possibilidade da criação das quotas preferenciais nas sociedades limitadas, a relação entre sócios pode ser arquitetada no interior da sociedade, com a previsão de quotas ordinárias destinadas aos sócios-fundadores e quotas preferenciais subscritas pelos sócios investidores.

 

  1. Das conclusões

Essas são as nossas breves avaliações vinculadas à possibilidade aberta pela Instrução Normativa nº 81, de 10 de junho do corrente ano, baixada pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), que permite o arquivamento dos contratos formados com a instituição das quotas preferenciais sem direito a voto, desde que o contrato social da sociedade aponte a adoção supletiva das regras da lei das Sociedades Anônimas.

Antonio Airton Ferreira[2]

Simone de Oliveira[3]

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[1] Direito das Companhias. Editora Forense, 2ª edição, p. 181.

[2]Sócio fundador da Ferreira e Ferreira Advocacia. Especialista em Direito Constitucional. Ex-Professor de Direito Tributário e de Planejamento Tributário da PUC-Campinas na Faculdade de Contábeis. Ex-Sócio da FISCOSoft Editora. Ex-Delegado da Receita Federal de Julgamento em Campinas. Economista, Advogado e Consultor Tributário.

[3] Sócia da Ferreira e Ferreira Advocacia. Advogada atuante na área Societária e de Fusões e Aquisições, com ênfase nas questões de Direito Societário e Direito Civil.


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