Por: Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, Gustavo de Castro Afonso, Fabrizio Caldeira Landim
Fonte: Conjur
O Edital PGDAU nº 11, de 30 de maio de 2025, baixado pelo procurador-geral adjunto da Dívida Ativa da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), João Grognet, publicado no DOU no último dia 2 de junho, sugere duas reflexões. Por um lado, trata-se de inegável medida arrecadatória, imprescindível nesses tempos de caixa baixo e de despesas superlativas. É um tema orçamentário. Por outro lado, cuida-se de medida também imperativa como fórmula de ajuste e calibre na relação entre o Fisco e contribuinte. Nesse aspecto, é medida que revela um direito público consensual. Novos tempos.
A multiplicação da litigiosidade tributária sugere imaginação institucional e opção por mecanismos que possibilitem a concepção de uma justiça fiscal consensual. Espera-se o consenso em ambiente no qual, em princípio, não haveria espaço para qualquer tentativa de acordo. Esbarra-se em escudo supostamente intransponível, marcado pelo dogma da indisponibilidade do crédito tributário, como decorrência da impossibilidade de se transigir com o interesse público. A PFGN está transcendendo esse problema.
A reforma tributária que se arrasta, e que detectou disfunções no sistema, relativos à complexidade, à cumulatividade, ao aumento do custo dos investimentos, à guerra fiscal, à tributação excessiva da folha de salários, começa a enfrentar questões relativas à multiplicação das discussões judiciais e administrativas. A reforma tributária em andamento trata de medidas de simplificação dos tributos federais, do imposto estadual de circulação de mercadorias e serviços, de desonerações da folha salarial, dos investimentos, da cesta básica, de mudanças no sistema de partilhas, no aprimoramento das relações federativas. Precisa também enfrentar substancialmente as disfunções da Administração Tributária.
Ainda há alguns céticos que argumentam com a tese da indução negativa, no sentido de que uma melhoria das relações entre a Administração Fiscal e os administrados reduziria o recolhimento espontâneo de tributos. É preciso vencer esse mantra.
Historicamente, com base no direito privado, o fundamento e a origem da transação assentariam no sentimento de paz. Discutia-se, ainda, se a transação originariamente qualificava pacto, distrato ou contrato, pendendo-se a doutrina nacional mais para essa última formulação. A transação implica em convergência sinalagmática, consensual, onerosa e comutativa, embora, eventualmente, de fundo aleatório, na hipótese de que uma das partes ficasse na dependência de acontecimento incerto.
O Edital PGDAU nº 11/2025 dá sequência a uma série de medidas concretas da PGFN no sentido de dar vida real ao disposto no artigo 171 do CTN. Nesse sentido o edital consolida um projeto institucional de efetividade da transação tributária. É um novo olhar sobre a gestão da dívida ativa, com fundamento na Lei nº 13.988/2020.
É inegável avanço institucional que parece oferecer alternativas mais eficientes à cobrança coercitiva. É mecanismo de solução consensual, especialmente diante do elevado estoque de créditos de difícil recuperação e da reconhecida inefetividade das execuções fiscais. Em um cenário fiscal restritivo, o edital aparece como instrumento de regularização e arrecadação, com potencial de estimular a retomada da adimplência sem o peso de litígios intermináveis. É fórmula que elimina os custos de aquiescência.
É um edital ambicioso, no que essa expressão carrega de positivo. Reúne, em instrumento único, quadro modalidades distintas de transação: por capacidade de pagamento, de débitos irrecuperáveis, de pequeno valor e de créditos garantidos por seguro ou carta fiança. Essas modalidades apresentam critérios próprios de adesão, prazos e descontos, o que amplia as possibilidades de enquadramento dos interessados. A flexibilidade das condições, com parcelamentos longos e descontos generosos sobre encargos legais, confere efetividade ao instituto, especialmente em relação à recuperação de créditos cuja exequibilidade é baixa.
Enfatizando a igualdade (o que ocorre, de fato, com o reconhecimento das desigualdades) há um necessário favorecimento a nichos econômicos mais vulneráveis. Referimo-nos a microempresas, instituições de ensino, Santas Casas e algumas outras organizações da sociedade civil. O discrímen é fundado em critérios de capacidade contributiva e relevância social, manifestando diretriz de justiça fiscal e de política pública distributiva.
Além de permitir prazos maiores e descontos mais amplos, reconhece-se que tais entidades, embora devedoras, exercem funções sociais essenciais que justificam medidas mitigadoras da pressão fiscal. No entanto, há devedores que não compreendem essa dinâmica, invocando que são prejudicados, na medida em que suas capacidades de pagamento são mais consistentes. Estão equivocados. Não é essa a lógica do modelo.
Se por um lado há vedação a adesão parcial, por outro lado o edital admite a combinação entre diferentes modalidades de transações disponíveis (artigo 13, § 1º). Persiste um entrave relativo à adesão relativa a transação rescindida nos últimos dois anos (artigo 14 do edital). O artigo 16 alcança débitos discutidos em juízo, o que revela política pública que alcança os objetivos do Conselho Nacional de Justiça.
O edital é rigoroso para com os deveres do contribuinte transigente. Há quem entenda que o modelo traduza uma desconfiança estrutural de alguns setores (mais tradicionalistas) do Fisco. Uma leitura mais crítica do edital pode evidenciar um mecanismo de obtenção de confissão unilateral. Essa fórmula pode, em tese, desestimular a leva de adesões. É o caso complicadíssimo do reconhecimento de grupo econômico, com suas implicações penais e até trabalhistas, isto é, se a adesão tem condão de fazer prova emprestada.
Há inovações operacionais, a exemplo de um estímulo à alienação de bens penhorados (plataforma Comprei). A restrição do uso do modelo à plataforme “Regularize” é medida de transparência, de tratamento isonômico, afastando, de vez, uma imaginária transação de balcão, que foi empecilho no avanço da regulamentação do modelo.
O momento exige confiança recíproca e amadurecimento institucional. Não há porque preocupar-se com o disposto no artigo 24 do Edital, que não é novidade, e que apenas reforça a discricionariedade (necessária) que milita em favor do Fisco. Dispõe mencionado artigo que “as unidades da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderão, fundado em critérios de estratégia de cobrança, vedar o acesso às negociações previstas neste Edital a determinados sujeitos passivos”.
Pensamos que o Edital seja bem mais do que um instrumento de cobrança de dívida tributária. É indicativo de uma necessária mudança nas relações entre Fisco e contribuinte. É instrumento de consolidação de uma necessária justiça fiscal dialógica e menos repressiva. Para o contribuinte, transigir com o Fisco não pode significar confissão e adesão irrefletida em troca de favores fiscais. E para o Fisco, transigir não pode se confundir com mais uma fórmula coercitiva de extração fiscal.
A transação é um mecanismo de boa-fé bilateral. Se extrapolar esse binômio conceitual perde seu significado. Se o respeitar, consolida uma fórmula inovadora no direito tributário brasileiro. E é o que vem acontecendo. O volume de adesões comprova esse postulado e essa esperança.