Por: José Matheus Muniz e Lucas F. G. Bento
Fonte: Conjur
No final do ano passado, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou o Edital de Consulta Pública SDM n° 01/24, dispondo acerca da criação do ambiente experimental de “Facilitação do Acesso a Capital e de Incentivos a Listagens — Fácil”, pensado para companhias de menor porte.
O Fácil tem como objetivo regulamentar o disposto no artigo 294-A da Lei das Sociedades por Ações (Lei n° 6.404/1976). O dispositivo, incluído por meio do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar n° 182/2021), estabeleceu à CVM a regulamentação de condições facilitadas para o acesso de companhias de menor porte ao mercado de capitais.
Ainda que o referido marco tenha como objetivo facilitar o desenvolvimento de pequenas empresas de cunho tecnológico, a instituição do Fácil pela CVM trará benefícios para sociedades por ações sem qualquer discriminação de setor de atuação, desde que respeitados os requisitos de enquadramento como companhia de menor porte.
Vale ressaltar que a CVM utiliza de estruturas inovadoras para estabelecer o regime Fácil, uma vez que optou por utilizar da consulta pública e criar um ambiente regulatório delimitado. Ou seja, ao invés de publicar diretamente uma nova resolução ou realizar alterações em resoluções já vigentes, a autarquia abriu período para envio de sugestões e comentários sobre a nova regulação.
Além disso, ela estabelecerá o Fácil em regime experimental, o que, a despeito de impor um regime transitório, permite que a autarquia tenha tempo para analisar os reflexos da proposta no mercado de capitais, podendo tirar conclusões e realizar eventuais ajustes, antes de sua incorporação definitiva ao arcabouço regulatório.
Logo, após o estabelecimento do Fácil (que ocorrerá com o fim da consulta pública), a CVM pretende avaliar o impacto dessa nova regulação no mercado de capitais, podendo concluir pela manutenção do seu regime – momento em que poderá realizar alterações na regulamentação – ou optar pela sua revogação.
Em relação ao conteúdo do Edital de Consulta Pública SDM n° 01/24, além da exposição dos objetivos da autarquia com a nova regulação, ele foi acompanhado de duas minutas – A e B. A minuta A traz o provável texto da futura resolução que regulará o regime Fácil e a minuta B traz mínimas alterações para implementação do Fácil na Resolução CVM n° 80, que dispõe sobre o registro e a prestação de informações por emissores de valores mobiliários, e na Resolução CVM n° 166, a qual dispõe sobre as publicações ordenadas pela Lei das Sociedades por Ações.
A proposta de resolução presente na Minuta A do Edital de Consulta Pública SDM n° 01/24 tem por objetivo regular (1) o enquadramento de sociedades por ações na condição de companhia de menor porte; (2) o registro de emissor de valores mobiliários pelas companhias de menor porte na CVM; (3) as dispensas de obrigações legais que essas companhias gozarão; (4) as ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários por companhias de menor porte; e (5) a supervisão dessas companhias por entidades administradoras de mercados organizados.
Para compreender as modalidades de ofertas públicas — objetivo deste texto, vale distinguir o que são companhias de menor porte, o que é a classificação CMP e as exigências para o registro de emissor de valores mobiliários.
De acordo com o artigo 2° da Minuta A, para serem enquadradas como companhias de menor porte, as sociedades anônimas deverão, tão somente, possuir receita bruta anual que não ultrapasse o montante de R$ 500 milhões. Por sua vez, o desenquadramento dessa condição ocorrerá automaticamente, quando sua assembleia geral ordinária aprovar demonstrações financeiras de encerramento de exercício social que evidenciem o auferimento de receita bruta consolidada em patamar igual ou superior a R$ 500 milhões ou caso as referidas demonstrações financeiras não sejam divulgadas ou aprovadas no período legal.
Agora, para obterem a classificação CMP, além de cumprir o requisito acima, as sociedades por ações, deverão (1) estar listadas em entidade administradora de mercado organizado (como a B3 – Brasil, Bolsa, Balcão S.A.); (2) encontrar-se em estado operacional; e (3) apenas nos casos em que já possuírem valores mobiliários de sua emissão em circulação, obter anuência prévia dos titulares desses papéis.
A diferenciação é válida, uma vez que as companhias de menor porte não precisam ser registradas como emissor de valores mobiliários para realizar ofertas de títulos de dívida destinadas exclusivamente a investidores profissionais, como detalhado abaixo. Contudo, para os demais benefícios do Fácil, é necessária a obtenção da classificação CMP.
As companhias classificadas como CMP poderão obter registro na CVM como emissor de valores mobiliários automaticamente, ao apresentarem pedido de listagem em entidade administradora de mercado organizado (como a B3).
De acordo com o Edital da Consulta Pública, a obtenção da classificação como CMP não necessariamente implica no registro da companhia como emissor de valores mobiliários na CVM. Inclusive, a autarquia considera a denominação de CMP como classificação, não se confundindo com as categorias de emissor A ou B.
Adicionalmente, a CVM criou a obrigação de que ocorra uma oferta pública de valores mobiliários em até vinte e quatro meses após a obtenção da classificação de CMP, com o intuito de que a referida classificação tenha a efetiva função de permitir acesso ao mercado de capitais e que não funcione apenas como registro meramente formal.
A Minuta A do Edital de Consulta Pública SDM n° 01/24, prevê a possibilidade das CMPs realizarem quatro modalidades de ofertas públicas.
A primeira modalidade é a utilização integral do rito previsto na Resolução CVM n° 160, sem a utilização de qualquer das dispensas trazidas pelo Regime Fácil. Sua previsão existe para garantir a possibilidade de a captação de valores superiores a R$ 300 milhões pelas CMPs, que é o limite imposto para as outras modalidades de oferta. O objetivo da CVM é deixar claro que uma CMP que obteve seu registro de emissor de valores mobiliários perante a autarquia de forma automática pode utilizar integralmente o rito de ofertas públicas da Resolução CVM 160.
A segunda modalidade prevê a utilização parcial do rito da Resolução CVM 160 em troca da limitação da oferta ao valor máximo de R$ 300 milhões a cada 12 meses. O principal destaque é a possibilidade de as companhias substituírem a elaboração do prospecto e da lâmina pelo Formulário Fácil.
O Formulário Fácil, umas das principais inovações deste regime, substitui a necessidade de elaboração do formulário de referência, prospecto e lâmina. Logo, uma vez que as CMPs já são obrigadas a manter o Formulário Fácil atualizado, independente da realização ou não de uma oferta pública, não haverá a necessidade de elaboração de mais documentos quando da efetiva realização de uma oferta.
Há, ainda, modalidade de oferta mais ousada proposta pela CVM, destinada exclusivamente à realização de ofertas de títulos de dívida destinados a investidores profissionais. Essa modalidade ainda utiliza parcialmente o rito da Resolução CVM 160, mas permitirá a dispensa (1) de contratação de instituição intermediária de oferta; (2) da necessidade de registro da companhia como emissor de valores mobiliários; e (3) da obrigatoriedade de auditoria das demonstrações financeiras. Assim como a modalidade anterior, essas ofertas estarão limitadas ao valor máximo de R$ 300 milhões a cada 12 meses.
Essas ofertas poderão ser realizadas por quaisquer companhias enquadradas como de pequeno porte, não sendo necessário o cumprimento dos demais requisitos para a classificação como CMP. Por mirar uma classe de investidores mais arrojada, essa é a modalidade que possui o maior número de dispensas, principalmente por permitir que a companhia interaja diretamente com potenciais investidores, sem a necessidade de instituição intermediária.
Por fim, a Minuta A do edital cria a modalidade de oferta direta — a única que pode ser considerada pertencente a um regime de ofertas públicas completamente novo. O regime pretende ser mais simples e célere do que o presente na Resolução CVM 160 e permitirá a oferta de ações e títulos de dívida sem restrição de público-alvo, desde que limitadas ao valor de R$ 300 milhões por oferta, sendo permitida uma oferta a cada período de 12 meses.
Nas ofertas diretas, o papel da entidade administradora de mercado organizado ganhará destaque, sendo ela a responsável pela análise e acompanhamento da oferta e das informações fornecidas pela companhia — papel que se assemelha muito ao das plataformas de investimento participativo nas ofertas regidas pela Resolução CVM n° 88. A companhia, por sua vez, estará mais próxima do investidor, sendo que ambos serão contrapartes diretas da oferta.
O objetivo da CVM é que esse tipo de oferta primária seja muito semelhante à aquisição de valores mobiliários em mercado secundário. O chamado “procedimento especial de negociação”, que será utilizado para essas ofertas, se assemelhará aos leilões normalmente realizados em mercados organizados: serão coletadas as ofertas de compra transmitidas pelos intermediários (representantes dos investidores), que determinarão a alocação dos valores mobiliários (de acordo com critérios objetivos definidos na futura resolução).
Em razão desse redesenho do papel da entidade administradora e da companhia, a CVM permitiu a dispensa da obrigatoriedade de um coordenador de ofertas públicas, sem prejuízo de sua contratação voluntária para assessorarem as companhias ofertantes. Destaca-se que referida dispensa diminui consideravelmente as despesas para realização dessas ofertas.
Ainda que não seja possível verificar na prática, as modalidades de ofertas presentes no Edital do Regime Fácil possuem dispensas que parecem reduzir consideravelmente os custos e documentos necessários para a estruturação de ofertas públicas. O Fácil representa um avanço no acesso ao mercado de capitais, principalmente pela criação do regime direto de ofertas e da modalidade facilitada de oferta a investidores profissionais. Como exposto pela própria autarquia, um dos benefícios esperados com a implementação do Fácil é tornar o mercado de capitais uma alternativa mais competitiva com o crédito bancário e, consequentemente, aumentar a variedade de investimentos no mercado.
Contudo, é frustrante o fato de que nenhuma das dispensas trazidas pelo Regime Fácil não sejam aplicáveis a operações de securitização, o que provavelmente ocorre pela maior complexidade da estrutura dessas operações. Afinal, há apetite para acesso ao mercado da securitização, principalmente pela possibilidade de antecipação de recebíveis e isenção de imposto de renda ao investidor em alguns papéis (como nos CRI e CRA). Certamente, a significativa redução de custos em algumas das modalidades de ofertas do Fácil ajudariam a baratear e popularizar ofertas de securitização.
Nessa linha, a CVM regulou, ainda em 2017, o regime de oferta pública por meio de plataformas de crowdfunding. Este regime de ofertas, atualmente regulado pela Resolução CVM 88, permite que sociedades empresárias de pequeno porte (com receita bruta anual de até R$ 40 milhões, entre outras características) realizem emissões de valores mobiliários em plataformas eletrônicas de investimento participativo. De acordo com o presidente da CVM, João Pedro Nascimento, um dos objetivos do regime Fácil é justamente o de atender a faixa intermediária entre o crowdfunding e as ofertas tradicionais conduzidas por meio da Resolução CVM 160.
Ocorre que, em 2023, a Supervisão da Securitização e Agronegócio da CVM (SSE), divulgou dois ofícios circulares, acerca da possibilidade de utilização do rito da Resolução CVM 88 para operações de securitização envolvendo tokens de recebíveis. Contudo, o ofício não foi claro acerca da utilização da norma para operações de securitização não tokenizadas — deixando um vazio regulatório sobre o tema.
Percebe-se, assim, que a não inclusão das operações de securitização no Fácil indica um padrão, por parte da CVM, em deixar essas operações sujeitas ao rito da Resolução CVM 160. Referido comportamento é contraditório, pois, a despeito do entendimento de que operações de securitização são mais complexas, na prática, elas estão autorizadas no rito da Resolução CVM 88 (por meio de tokenização) — em faixa econômica inferior à almejada pelo Fácil.
Assim, faz-se necessário posicionamento da CVM acerca das operações de securitização em regimes alternativos ao da Resolução CVM 160, uma vez que há demanda por parte das empresas para emissão desses valores mobiliários.
Tais análises indicam que há apetite para acesso ao mercado de capitais por diversos setores econômicos e, a despeito das críticas aqui realizadas, a CVM parece estar atenta a estes movimentos: no edital do regime Fácil, a autarquia destacou que pretende usar da experiência obtida com o Fácil para, eventualmente, regulamentar mercados ainda menores.